Em fins de janeiro de 2001, na cidade de Porto Alegre, realizou-se a primeira edição do FSM – Fórum Social Mundial. Surgiu com marca de ousadia e inovação, contestando a hegemonia do pensamento neoliberal simbolizado pelo Fórum Econômico Mundial, em Davos, que na mesma data reunia os auto proclamados senhores e donos do mundo. De um lado, a surpresa, a festa barulhenta de encontros e desencontros numa verdadeira praça da democracia, de identidades e línguas diversas, e a constatação de que, afinal, não somos tão poucos os que acreditam que “outro mundo é possível”, a expressão agregadora do FSM. De outro, o hotel de luxo da estação de esqui, misto de celebração retórica das benesses do mercado de um capitalismo globalizado, sem fronteiras, e de pura negociação em vista de mais e mais lucros, sem amarras. Surgido como um evento, o FSM desencadeou uma onda, que ao longo dos últimos anos foi ganhando força, com realizações de Fóruns mundiais, continentais e regionais, nacionais, locais, temáticos. Perdeu-se a conta e ela ainda não acabou. Agora, em 2010, já iniciamos o décimo ano deste processo que vai penetrando o mundo e alimentando a esperança.
Assim começou o FSM: um espaço aberto que, sem negar a marca de origem contestadora do neoliberalismo, quer ser uma espécie de recarregador de baterias da cidadania ativa, agora necessariamente de dimensões planetárias, pois é dela que depende a solução das contradições deste capitalismo levado ao seu extremo. O FSM já deu uma fundamental contribuição para a emergência de uma cultura cidadã em escala mundial. Hoje é um processo que segue seu próprio curso, apropriado por organizações de cidadania ativa, movimentos sociais e redes em diferentes partes do mundo. Ele inspira um modo de tentar construir uma inteligência política coletiva sobre os problemas, desafios e possibilidades das lutas que empreendemos, cada qual a seu modo, no lugar em que nos encontramos no Planeta, mas que as circunstâncias nos tornam interdependentes, obrigados a compartir um mesmo mundo para dele fazer “um outro mundo”. Para a nossa grande diversidade de identidades e culturas, a nossa pluralidade de visões e perspectivas, todas legítimas mas sempre negadas, o FSM nos oferece um espaço aberto – uma espécie de usina para nova cultura política – para que nos reconheçamos iguais como humanidade e parte do mesmo e único sistema planetário para compartir entre todas e todos.
Não pretendo fazer aqui a história do FSM. Deixo a história para a história. Mas mudou muito o contexto cultural, político e econômico do mundo entre 2001 e 2010. As múltiplas e articuladas crises recentes são expressões das contradições e limites a que o capitalismo globalizado submete a humanidade e a sustentabilidade da própria vida no Planeta. Hoje “outro mundo possível” torna-se uma urgência e uma necessidade inadiável. Quero pensar, por isto, nos desafios daqui para diante, para além do FSM. Não estou aqui propondo uma mudança do FSM em si, pois penso que ele deve continuar a tarefa inspiradora que é sua marca. Os encontros do FSM ainda alimentam o sonho e a esperança para muitos, mundo afora. E o mundo é ainda enorme para as dimensões reais que o processo de realizações do FSM conseguiu até agora. Muita semente precisa ser espalhada por diferentes territórios de nosso Planeta e fazer ressurgir a vontade de mudança. Que o FSM siga o seu curso e sua capacidade mobilizadora, especialmente cativando as jovens gerações, como vimos em janeiro de 2009, em Belém. Sou dos que pensam que ninguém segura esta “onda de cidadania”, pois o FSM já em nada depende do nosso bando de velhos cúmplices – quase todos homens, além do mais. O FSM poderá mudar muito, como aliás mudou a cada ano, mas erra quem decreta o seu fim. Ele é um patrimônio da humanidade, hoje. É ela que necessita de um espaço aberto como o FSM para se repensar.
Como a minha própria reflexão está ainda em elaboração, apenas uma espécie de guia para minha atuação como diretor do Ibase, para dentro e para fora, aquém e além do FSM, e uma contribuição aberta aos parceiros e parceiras em redes, articulações e lutas democráticas que juntos empreendemos, dou ao texto uma forma de pontos, agrupados em três conjuntos: 1) O FSM como inspiração e como limite; 2) Elementos para uma agenda além FSM; e 3) Um possível modo de agir.
I.- O FSM como inspiração e como limite
– A contribuição mais evidente do FSM foi reacender uma força galvanizadora ao se contrapor a Davos e simplesmente afirmar que “outro mundo é possível”. Isto foi possível ao deslocar o foco quase exclusivo no Estado e na economia e apelar para a capacidade de ação transformadora dos múltiplos e diversos sujeitos coletivos, organizados em entidades, movimentos, redes, coalizões e alianças, que resistem, formulam propostas concretas e vão à luta por sua concretização. Num certo sentido, não é o FSM que inspira, ele simplesmente é um convite a uma reflexão compartilhada de experiências e saberes que se desenvolvem na prática, nas mais diversas situações, para, com abertura ao mundo, potencializar a própria ação, segundo as possibilidades de cada sujeito e em cada contexto. O FSM cria bases de uma nova cultura política de transformação exatamente por estabelecer como um imperativo o diálogo planetário horizontal, sem protagonismos, racismos ou patriarcalismos, diálogo intra e inter sujeitos, uns e umas reconhecendo os outras e as outras igualmente como sujeitos.
– A nova cultura política não é uma invenção do FSM, mas ele é um grande propulsor e indutor. Pelo seu caráter de espaço aberto à diversidade e pluralidade – como definido na Carta de Princípios – o FSM tem conseguido se tornar uma referência de encontros e trocas, sem hierarquias ou prioridades. No seu interior se forjam legítimos consensos e dissensos (na verdade, outros consensos), extraindo assim da diversidade social e cultural, do encontros e desencontros, e da pluralidade política a energia que o mantem como referência de uma nova cultura política de caráter planetário.
– É forçoso reconhecer que, se bem é uma nova cultura política que está presente no FSM, ela é apenas algo emergente, em construção. Nós todos e todas trazemos ao FSM nossas estruturas mentais, valores e práticas, com todas as suas contradições. Começando pelo mais simples: confundimos diversidade com cada qual fazer o que quer, mesmo que seja uma atividade para os seus pares, dificultando aglutinações, fusões e buscas coletivas, razão de ser do espaço FSM. Não nos iludamos do tamanho da tarefa pela frente. Nosso modo de pensar e agir de esquerda no seio do capitalismo ainda vem carregado por determinismos conceituais e políticos que priorizam, hierarquizam e protagonizam os sujeitos, o que no FSM muitas vezes se manifesta na ocupação do território e na disposição de atividades. Apesar da massiva presença de organizações e movimentos feministas, o machismo encrustado nas relações não dá às mulheres a devida relevância nos diálogos e trocas. Língua e diversidade cultural são patrimônios e riquezas a preservar, mas não sabemos lidar com o problema da tradução, apesar das tecnologias de informação e comunicação ao nosso alcance. Isto talvez porque está na tradução, no sentido que Boaventura Souza Santos dá a ela, o básico para aceitar e reconhecer os outros e as outras como detentores de saberes tão ou mais importantes que os nossos, em diálogo com os quais, como dizia Paulo Freire, poderemos juntos criar um novo saber, sobre nós mesmos, a sociedade, o mundo. Enfim, sem ser exaustivo, assinalo estes problemas só para acentuar o caráter ainda incipiente da nova cultura política.
– Um aspecto, que considero o grande legado do FSM até aqui, é o resgate e a valorização da política como a arena por excelência da construção de outro mundo e da ação cidadã como força transformadora. Num mundo capitalista cada vez mais dominado por grandes corporações de negócios, cada vez mais privatizado, mais mercantilizado, mais cínico e violento, de um consumismo desenfreado, destruidor do patrimônio comum da vida, criador de exclusões e acentuada desigualdade social, o FSM ressignifica o público e a política, e traz ao centro os princípios e os valores éticos para pensar a natureza, a vida, a economia e o poder.
– Em síntese, considero três os pontos fortes do FSM como inspiração: 1) reacender a esperança e recolocar a história no seu lugar, como produção humana e não determinação metafísica; 2) por em questão os determinismos e protagonismos próprios da cultura de esquerda; 3) valorizar a energia da diversidade de sujeitos coletivos. Mas aí vem os limites. Não dá para ignorar que o modo de acontecer do FSM como espaço aberto, centrado em eventos como sua grande realização, é o que é: um processo de eventos que vem despertando consciências e vontades para um novo fazer. Contudo, ainda não é o fazer de um outro mundo. É apenas um passo, um começo fundamental, um abrir de portas. O FSM é uma condição necessária mas insuficiente do novo, no meu modo de ver. Para surgirem forças transformadoras do que aí está vai ser preciso fazer um caminho para além do FSM, não mais como Fórum e sim como invenção de sujeitos que acordam entre si ações concretas de incidência que julgarem adequadas nas diferentes situações e conjunturas, sobre relações, estruturas e processos de poder em crise, mas ainda muito vivos e dominadores. Os desafios se vislumbram e ecoam no FSM. Seu enfrentamento, porém, exige uma nova criatividade políticocultural. Aí reside o dilema: como espaço, penso que o FSM é indispensável ainda, mas por causa do próprio Fórum sinto-me empurrado a iniciativas para além dele, iniciativas de incidência do plano local ao mundial, construindo as articulações necessárias.
II.- Elementos para uma agenda além FSM
– Repolitizar a vida, a relação com a biosfera, o poder, a cultura e a economia e agir com uma perspectiva planetária e cosmopolita, este é o ponto de partida. Como assinalei acima, o FSM ressignifica a política e o poder, dando-lhes centralidade em contraposição às relações de mercado e à economia. Aponta, neste sentido, para o poder instituinte, constituinte e transformador da cidadania ativa. Não elabora e não define, enquanto tal, a agenda ou as agendas de luta. Legitimamente, as agendas de cada sujeito coletivo, individual ou as construídas em redes, coalizões e alianças, são trazidas, debatidas e, muitas vezes, atualizadas nos eventos do FSM. A responsabilidade por elas é de quem as adota, não podendo ser impostas ao conjunto dos participantes do Fórum. Não sendo o FSM o objetivo da ação política transformadora, mas apenas um meio de fortalecê-la, a questão da agenda política é crucial para cada participante, como expressão de seu direito e responsabilidade humana e cidadã. É neste sentido que penso ser um dever como participante priorizar a agenda política no antes e no pós evento Fórum. O além FSM a que me refiro tem este sentido de intervenção nele com uma agenda que se elabora, até inspirada por ele, mas sem se limitar a ele, tomando o FSM apenas como um momento de reflexão e troca. A minha prioridade é avançar na agenda de luta e buscar as parcerias e alianças possíveis para melhor incidir nas diferentes situações e contextos em que vivo.
– Hoje penso que a questão central de uma agenda de enfrentamento do capitalismo é a busca de alternativas à “crise de civilização” que tem por base o seu domínio colonial e imperialista sobre povos e a natureza e o desenvolvimento industrial, produtivista e consumista que o capitalismo promove em função da acumulação desenfreada. Destruição ambiental e injustiça social são condições intrínsecas do capitalismo, exacerbadas hoje com a globalização a serviço dos grandes conglomerados econômicos e financeiros sob a guarda militarizada imperialista. A fratura social só se aprofunda e a ruptura com a biosfera e os bens comuns da vida para todas e todos chega ao limite do irreversível. Não é possível tornar sustentável tal civilização, daí a crise. Para tornar sustentável a vida, toda forma de vida, os povos e suas sociedades, é fundamental enfrentar a injustiça em sua dupla face: social e ambiental, injustiça socioambiental. Para tanto, se impõe como prioridade a disputa do ideal do bem viver e uma busca sistemática de alternativas de poder e economia ao modelo de desenvolvimento industrial, produtivista e consumista do capitalismo. Mas não é mais possível limitar-se à mudança das relações sociais de produção para dar vazão às forças produtivas, como posto no ideal dominante das esquerdas. Trata-se de por junto em questão o tipo de desenvolvimento de forças produtivas. Ou seja, o ideal da sociedade industrial, dos bens e serviços que propicia e do estilo de consumo e de vida que gera, é parte da injustiça socioambiental que precisamos enfrentar. A idéia de resistência à mercantilização de tudo, dos bens comuns e da própria vida, está bem presente no clima do FSM. Mas isto é pouco. É todo o imaginário de sociedades sustentáveis que precisa ser refeito, do local ao mundial, segundo as possibilidades e limites da biosfera e da criatividade cultural, científica e técnica de cada povo, num espírito de interdependência e solidariedade planetária.
– Um elemento chave da nova cultura política e de uma agenda de transformação social é descolonizar e libertar nossos modos de pensar e agir. Muitas formas de ver as questões da exclusão social e pobreza nos tornam presas fáceis de uma agenda de desenvolvimento imposta pelo poder colonial e imperialista do capitalismo. Não conseguimos pensar alternativas de criação de maior justiça social fora de um quadro estreito de crescimento. No contexto de “crise de civilização” que vivemos é outro poder e outra economia que precisam ser pensados. Precisamos ainda desnaturalizar as relações que condenam muitos à pobreza, exclusão, múltiplas formas de desigualdade e dominação. Não é a falta de desenvolvimento que explica tais situações, pelo contrário, é por causa dele. O desenvolvimento como símbolo da civilização que vivemos alia o velho e o novo e deles se alimenta. Reinventa constantemente o racismo para dominar e excluir. Hoje é visível a territorialização do racismo, no interior das socidedades (favela x asfalto), entre cidades e regiões, entre cidade e campo, entre agronegócio e formas sociais diversas de produção e vida de grupos excluídos, e nas relações entre povos e nações, num verdadeiro processo de racismo ambiental. O velho patriarcalismo é renovado e naturalizado pelo capitalismo. Com isto domina e desvaloriza, mas se beneficiando, de uma economia do cuidado, impondo uma dupla jornada de trabalho às mulheres. A publicização e politização desta agenda que emerge das lutas das mulheres é tarefa da cidadania como um todo, do local ao mundial.
– Em termos de agenda política, tendo presente o contexto de crise profunda em que está o sistema hoje e mirando o caminho a construir para a transformação desta civilização de injustiça socioambiental, é fundamental pensar no processo necessário de rupturas cumulativas. A questão que se coloca é política e ética ao mesmo tempo. A legalidade institucional deve ser tensionada pela legitimidade da mudança. O arcabouço institucional que nos confina a Estados Nação se revela uma arena necessária, mas extremamente limitada da luta por “outro mundo possível” ou, como hoje prefiro, “outra civilização possível”. Estamos diante da necessidade inadiável de contrapor a soberania cidadã e dos povos aos Estados soberanos e seu monopólio na esfera mundial do poder (mesmo quando Estados subordinados e subservientes, como a maioria dos quase 200 países do mundo). Isto implica em tensionar a legalidade existente, dentro e fora, em nome de uma legitimidade e responsabilidade ética de rever processos e estruturas, políticas e econômicas, que negam direitos iguais e destroem as bases naturais da vida. Considero fundamental aqui radicalizar uma concepção emergente no processo FSM: a cidadania não é uma dádiva dos Estados, mas condição política de ser parte da humanidade. Tirando as consequências de tal afirmação, surge necessariamente a agenda de repensar e refundar o Estado como expressão política do poder que as “cidadanias”, iguais e diversas, lhe conferem. Vasta tarefa de construção política, que precisa ser feita com mente aberta e muita ousadia política.
– Isto me remete a mais um elemento essencial da agenda: a nova arquitetura do poder. A interdependência entre povos e nações, no quadro do capitalismo globalizado de hoje, é sem dúvida um grande problema gerado pela dominação imperialista dos países desenvolvidos, particularmente dos EUA. Mas a interdependência traz, contraditoriamente, uma enorme possibilidade de futuro. O próprio FSM como espaço de uma emergente cidadania planetária não seria possível não fosse a difusa consciência de interdependência onde, em nossa diversidade de povos, culturas e identidades políticas, somos parte de uma mesma humanidade e compartimos um mesmo Planeta. Interdependência, porém, não pode ser pensada e praticada sem uma localização concreta, onde temos o essencial de nossas vidas e relações com os outro(a)s e realizamos nossas trocas com a biosfera. Como repensar este fundamental local, em termos de poder, cultura e economia, de uma perspectiva cidadã planetária? E como repensar o poder mundial de uma perspectiva de cidadania territorializada? Para não sermos pegos pelo pragmatismo mais multilateral (mas nada cosmopolita) que a crise impôs aos países dominantes do G-8, abrindo-se ao G-20, com a inclusão de novos sócios no clube do poder – inclusive Brasil – e assim melhor dominar o mundo, é fundamental que enfrentemos a agenda da nova arquitetura do poder, que implica necessariamente uma refundação da ONU e dos Estados Nação, no horizonte não tão distante assim. As cartas de Direitos Humanos – revista de uma perspectiva cosmopolita e liberta, ela também, da perspectiva civilizatória ocidental – e a emergente, das Responsabilidades Humanas fornecem elementos, mas ainda insuficientes. Em termos políticos, uma agenda fundamental é politizar e radicalizar as potencialidades que oferecem as tecnologias de informação e comunicação, por permitirem a participação horizontal em escala planetária, com formação de redes sem fronteiras de países. Não se trata só de usar a TIC, mas de politizar o espaço que oferecem como arena política de uma perspectiva cidadã cosmopolita.
– Finalmente, como brasileiro, penso que é indispensável problematizar o Brasil no contexto mundo. Sabemos que temos muita injustiça social e ambiental para dentro com que nos ocupar. Corremos, porém, o risco de referendar uma agenda que vai contra tudo o que apontei acima. Como país emergente, o Brasil tende a usar a base de recursos naturais de que é dotado, num mundo carente de tais recursos, para a seu modo fazer valer a estrutura de poder regional e mundial a seu favor. A velha agenda do petróleo, como vem ficando claro no debate sobre as reservas do Pré Sal, e as propaladas possibilidades de felicidade geral da nação podem nos levar a referendar um conjunto de políticas que reforçam o modelo de desenvolvimento ambientalmente predatório e socialmente excludente. É deste Brasil que a cidadania planetária precisa?
III.- Um possível modo de agir para além do FSM
– Aqui quero chamar atenção para a incontornável necessidade de organizar de forma nova as forças para impulsionar a agenda. Novamente o FSM serve como um caldo inspirador, mas falta a tarefa difícil e continua de organizar os sujeitos, avaliar as oportunidades políticas e ir à luta. Só destaco alguns pontos, pois, de fato, é no agir que se faz a ação (é caminhando que se faz o caminho). Ele começa pela acordo sobre a agenda, que por mais amplo que seja sempre será dos que a ele aderem. Portanto, ele já aponto para um além do FSM. A questão mais delicada é construir coalizões de sujeitos coletivos com um máximo denominador comum (para me contrapor ao mínimo denominador comum de certas declarações genéricas e vazias) sobre a agenda e a ação política. Falo de coalizões inter movimentos e organizações de cidadania ativa. A experiência existente, de relativo sucesso, é de campanhas temáticas. No caso, porém, falo em ações diferenciadas e coordenadas de uma cidadania militante, visando tensionar estruturas e poderes constituídos, nas mais diversas situações. A cultura política de incidência internacional é intra movimentos e organizações, ligando o local ao mundial (Confederações Sindicais, Via Campesina, Plataforma de Direitos Humanos, OXFAM Internacional, ALOP, Articulação Feminista Marcosul, para dar alguns exemplos). Falta-nos o inter movimentos, organizações e redes.
– Um elemento metodológico a considerar é a possibilidade de transformar a idéia de redes – dominantemente de diálogo político e concertação sobre agendas temáticas comuns – para algo mais no sentido da iniciativa e incidência coordenada, como um verdadeiro trabalho político de cidadania desenvolvido em rede pelo conjunto diferenciado de sujeitos em coalizão. Além da agenda propriamente dita para a ação, definem-se os princípios e valores éticos norteadores, os objetivos comuns e as formas de mobilizar e compartir recursos entre os parceiros. Isto exige paciente trabalho de construção do que potencialmente venha a ser um sujeito político de novo tipo, com identidade e propostas, do local ao mundial.
– A questão crucial do agir é a disputa e construção políticocultural de hegemonia nas sociedades locais concretas e nos vários níveis de incidência política, até as estruturas de poder mundial ( mídia, fóruns de dirigentes políticos e empresariais, cúpulas etc.). Refirmo-me à disputa de hegemonia no sentido gramsciano que, numa apropriação livre, defino como a criação de “grandes movimentos cidadãos irresistíveis”. Como fazer isto sem protagonismos a priori, como é da tradição de esquerda? O segredo, me parece, está na construção de coalizões abertas, que partem de reconhecer como indispensáveis os outros e outras e que de todos e todas depende a própria agenda e a construção do caminho de sua implementação. Deste modo podem gestar-se consensos ativos, fundamentais para dar força na disputa de hegemonia. Mas é fundamental reconhecer que, para a cidadania, sempre o espaço público do debate e da livre circulação de idéias é a prioridade. A comunicação e as campanhas públicas são, assim, uma arena prioritária do modo de agir necessário.
– No FSM fala-se em democratizar a democracia. Como? Como concretizar a radicalidade do agir contido em tal afirmação? Penso que se trata de apostar na democracia como modo de transformar a sociedade, sem a opção pela violência da força armada. Ou seja, a radicalidade está em fazer valer as contradições da disputa de hegemonia e poder que a democracia propicia com uma estratégia de revolução permanente, de legitimidade das demandas cidadãs instituindo a legalidade do direito, como conquistas democráticas.
Rio de Janeiro, 01.01.2010
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