Se criticarmos principalmente o universo mercantil, devemos olhar de perto o que está em jogo nestas questões sobre a troca, pois aspectos mais complexos do que se pode imaginar estão em jogo.
A gratuidade é uma questão que apresenta ares teóricos, mas que tem conseqüências práticas, com uma parte positiva, certamente, mas com custos ocultos e paradoxos.
Vamos distinguir 2 fontes de riquezas:
– Os recursos de fonte natural, a natureza não cobra. Como dar um valor monetário, por exemplo, à super abundância de energia solar?
– As fontes de riqueza dos humanos, e inter humanas. As atividades de troca livres de moeda dominam o conjunto das relações humanas e são bem mais importantes do que as atividades da economia mercantil: relações domésticas, voluntárias, amicais, amorosas
(ref. Karl Polanyi. « La Grande Transformation »)
Se essas riquezas dominam, o que é então que nos coloca numa situação difícil?
A economia da doação, da gratuidade, é fundamental, dominante em volume de tempo de atividade, mas a força da economia mercantil, apesar de minoritária em tempo, domina na sociedade. O que traz problemas também são os custos ocultos da gratuidade. A gratuidade e a doação podem também ocorrer como circunstâncias dissimuladas e eficazes de relações de dependência e dominação, de não transparência relacional, de rivalidade. Assim, em Marcel Mauss, o outro, se não quer ser dominado, deve dar um presente ou algo equivalente: é a lógica da doação de rivalidade, a doação / contra-doação. Estar consciente de que estes elementos de dependência e dominação estão presentes no universo da gratuidade, de que captação de poder e apropriação de riquezas circulam em formas não-monetárias, mascaradas, aparentemente gratuitas, mas alienantes. Em relação a tais poderes, a passagem por uma economia monetária pode, portanto, ser uma base de emancipação.
Logo, a aposta é ver como podemos caminhar na direção de uma gratuidade emancipadora, forma não marcada pela dominação, nem pela “servidão voluntária” (La Boétie), pois se a interiorização da dominação é aceita, há ainda mais alienação.
Para caminhar nesta direção, é necessário interrogar mais radicalmente as raízes antropológicas da rivalidade que, no ser humano, bloqueiam a lógica da confiança e da verdadeira doação. Tendo consciência do problema. Estar consciente de que não é evidente Ser humano.
Estar consciente de que também não é evidente Ser humano com outros humanos.
Porque nossa espécie é muito peculiar, por causa desse par muito rico e intoxicante: o par da vulnerabilidade e consciência.
– Nossa vulnerabilidade: a evolução entrou num acordo para nossa lidar com nossa pretensão: nascer antes do tempo. Nascemos num estado de grande vulnerabilidade física e psíquica.
Este ser humano pode se tornar um mendigo de amor.
Primeira etapa: a pornóia (fusão, absorção corporal “você é meu!”.). Não é um problema para o recém-nascido, mas se torna um quando ficamos travados (possessão, ciúmes, obsessão, propriedade…). Por estas duas posturas: nos alimentar, ou nos deixar absorver, os efeitos coletivos são destruidores. No imediato, ou logo após.
– Nossa consciência: o aparecimento da consciência no universo é um presente extraordinário. Presente que o universo dá a ele mesmo, do poder criador. Mas ele produz separação; vis a vis de si mesmo, vis a vis dos outros, vis a vis do universo. Comigo mesmo, no melhor dos casos, é diálogo interior, ou então, é a guerra. Sós, já nos encontramos a dois, e em casal, somos quatro. Não é evidente Ser alter cooperativo.
O problema vem do que se coloca externamente ao problema: existe sempre um obstáculo a eliminar, o materialismo, o patronato, etc… com certeza, sim, mas cuidar somente de um obstáculo por vez não adianta. Encontraremos todos os outros. As estratégias anticapitalistas podem assim ser cegas sobre os fenômenos de captação de poder (comunismo) ou de sentido (ref revolução iraniana de Khomeiny). A complexidade requer integrar lucidamente diferentes componentes ao mesmo tempo, e o mais difícil, trata-se de nós mesmos como seres humanos. A maior parte dos fracassos dos movimentos alternativos não vem da força dos adversários, mas do fato de que elementos não foram conscientizados e tratados.
Atenção, as crises em universo não lucrativo são as mais graves. Mais graves do que em empresas, partidos políticos. Pois se corre o risco da decepção que conduz à perda de esperança. Chegamos então ao essencial: a 4a de nossas paixões: Riqueza, Poder, Sentido, Reconhecimento. Essa paixão de reconhecimento é o amor sob todas as formas. As duas primeiras têm uma energia emocional fraca. Elas não passam a barreira da morte. O eixo fundamental sobre o qual se é capaz de passar a barreira da morte é o do Amor e do Sentido. Somente as palavras de Vida neste eixo têm a capacidade energética de nos fazer vibrar.
As captações da ordem do Amor e do Sentido são para muitos as mais dolorosas e as mais destruidoras. Se não aprendermos a senti-las (o que exige tempo de vida), poderemos acreditar que as outras paixões bastam, e caímos no risco do idealismo, com seu preço e seus efeitos superpostos de desesperança, de misantropia profunda.
Conseguir ter uma clara consciência disso. E transformar este problema em um trunfo. “Se sair bem dessa” seria… abandonar a natureza humana! Seria mais simples sem consciência! Viva o reino animal! Seria mais simples sem movimento! Viva o reino vegetal, a beleza ideal do reino mineral… E se a fascinação pelo dinheiro viesse daí? O ouro não é mais um vetor monetário, mas no fundo do inconsciente coletivo, uma fascinação por um mineral que brilha… as estrelas, estas pedras preciosas numa abóboda celeste imóvel… o universo sideral. De siderar = desejo.
De um bloqueio imaginário, aprender a passar para o lado do desejo. A distinguir da necessidade. A necessidade se completa, auto-regulada pela satisfação. O desejo é de natureza indefinida, e ele é dobrado se a energia for desestruturada pela captação.
Liberalismo ou socialismo? As duas tradições fracassaram, pois nós humanos não somos somente seres com necessidades, mas seres com desejos.
Ser ou Ter? O que se torna crucial é a questão da natureza e da orientação de nosso desejo. Não é somente da ordem do privado, é também da ordem do político. A consciência da morte, o sentimento de nossa finitude, pode levar a uma energia de vida poderosa. É com o desejo que a humanidade pode deslocar as montanhas, e fazer atrocidades. Sua cópia é a angústia. A crise atual é uma lente de aumento muito potente que nos confronta às doenças do desejo coletivo e individualista, o exagero, e por trás do exagero, o mal Estar e o maltrato. A crise econômica, o produtivismo, é o excesso / a natureza. Em 3.200 bilhões de transações, 2,7% correspondem a trocas financeiras sobre bens e serviços reais. Os 97% restantes são economia emocional! Ref. Bernard Lietaer, Banco central da Bélgica. Para lutar contra a angústia de morte, populações acreditam que a resposta está na compensação exagerada. É como dependência química. Isso não cria melhores seres, cria disfunções.
Incentivos existem. Em 1998, o PNUD mostra que a quantia necessária para resolver as necessidades básicas da humanidade é de 40 bilhões de dólares. O orçamento anual dos gastos com publicidade é de 400 bilhões. Uma verdadeira indústria da orientação do desejo transforma um desejo da ordem do Ser em um desejo da ordem do Ter. Beleza, amor, serenidade são vendidos numa economia de “consolação” para aumentar a serenidade e a paz. Comprar algo “rústico” (“o gosto da autenticidade”) ou do Port Salut, ou usar bem o seu tempo de viver? Se ter é superior a ser, cria-se uma raridade artificial, e um gigantesco mercado do mal Estar ao vivo. O orçamento das drogas é superior ao da publicidade. Com o orçamento dos armamentos, geram-se maus tratos, medo e angústia. 10% de um desses orçamentos, reciclados, resolveriam as grandes questões de sobrevivência. Mas a questão ecológica continuaria em pauta, enquanto mantivermos relações guerreiras com a Natureza, vis a vis do Outro, e de nós mesmos.
A questão da alegria é essencial, é a alternativa ao medo. O bem estar é o coração, a qualidade de humanidade que se é capaz de viver. Atingir enfim a arte de viver, e não um capital, que perdemos de perder, ou de não ter. Eu tenho bens, eu tenho medo. Eu estou bem, é a qualidade de viver na felicidade, enfim, não somente no plano individual, mas também no plano político. Eu estou bem é uma qualidade de presença ao Outro, e com certeza a mim mesmo. Nós estamos bem, então posso provar da intensidade desta breve viagem no universo e desta oportunidade de encontrar companheiros de estrada.
Treinar para a alegria de viver é resistir. (Florence Aubenas e Miguel Benassayag, “Résister c’est créer”). Cultivar a capacidade de sentir, entre prematuros psíquicos. Estratégias “nós iremos fazer o bem”… Treinar para a alegria de viver, treinar a se fazer bem. Então nossa taxa de vício em drogas diminuirá. Nós nos damos energia. Damos energia para ir enfrentar as zonas de alta patologia, onde reinam solidão, contaminação e desespero. E é também uma garantia para nós mesmos de descontaminação. É uma antecipação positiva que evita as formas compensatórias.
Os SELs. Exemplo de universo que se construiu na crítica, na diferenciação, na transformação do universo mercantil. Ver como em seu próprio seio os SELs resistem no ambiente não monetário, como são levados a brigar com os custos difíceis.
Quando conseguimos, isso se torna um grupo amigável, e então continuar a contar nos cansa! Atinge-se uma qualidade de sucesso na qual, caso esteja bem integrado numa postura, há uma ajuda mútua com a Alegria de Viver e isso tem um efeito de alavanca com as outras categorias.
Esta gratuidade da verdadeira doação é rara: exit pornóia (para o recém-nascido), encontro da alteridade, sexuada – Eros – ou não sexuada – Philia, e enfim Ágape cuja característica é um grau de fluidez extraordinária, condição da doação incondicional. Recebe-se mais do que se dá, sem cálculos, no encontro do Outro.
Não sejamos idealistas, trata-se de um trabalho para chegar aí, um caminho de aprendizados e de ajudas mútuas necessários, passando por Eros e Philia. Não é possível sozinho, necessitamos de estratégias cooperativas, eis a utilidade dos SELs, dos SOLs, de todas as formas de trocas e de moedas sociais, etc…
Os ingredientes são a consciência e a questão do desejo. A moeda é a energia. É um substituto do desejo. Onde há um desejo suficientemente forte, pode-se dispensar a moeda. Ocorre uma crise na comunidade cada vez que há uma crise do desejo micro ou macro. Matéria ou mentalidades não são antagônicas, mas a segurar pelas duas extremidades. O recurso é o par da consciência e desejo, a melhor fonte, que permite um sobressalto qualitativo da humanidade e a capacidade de progredir. Caso sejamos somente lucidez, e não animados pela energia amor, ficamos no medo. A aposta, o desafio, nossa responsabilidade, nossa esperança: desbloquear nosso imaginário. Ao desbloquear nosso imaginário, passamos de “mamífero consumidor” (Catherine Dolto) à capacidade de encher nossa missão de humanidade.
A maior parte dos problemas de limites, nós os produzimos. Eles vêm de conseqüências de nossa conduta de excesso. Ter sempre em mente este par, excesso – mal Estar.
Se trabalharmos na questão da superabundância, é preciso trabalhar a questão do Bem Estar, senão, corremos o risco da dependência. Lógicas autoritárias, atitudes sectárias, aproveitam-se disso para circular. Se trabalharmos ao mesmo tempo a questão do Bem Estar e da Alegria de Viver, chegamos a resultados interessantes em termo de comportamento, atitudes, posturas.
Estamos no final de um grande ciclo dos tempos modernos. Será que sairemos por cima ou por baixo? Cuidado com as propostas integristas. Ver os impasses de certas formas da modernidade. Fazer coleta seletiva! Sair do pensamento binário, praticar o ternário. O pior da modernidade é a coisificação dos seres pela mercantilização. O melhor é para guardar: a emancipação.
É o que permite o verdadeiro diálogo das civilizações e viver o relativismo sem regredir, sem projetar uma dominação. Pode-se ter um cursor suficientemente bom olhando em que ponto se encontra o direito das mulheres, pois elas não estão em posição dominante.
A verdadeira riqueza é a relação à alteridade. É pensar espaços onde se tem complementaridades entre iniciativas. É a riqueza compartilhada, onde cada um é reconhecido em sua singularidade.
É preciso reagrupar as forças de vida criadoras. Que elas se dêem mutuamente alegria de viver. Isso permitirá chegar a Ágape, a forma que causa mais satisfação de acolhimento, de confiança. Por que se privar disso? Por que não trabalhar a economia da alteridade? O que propomos, por exemplo, em Dialogues en humanité, é um começo para workshops de inteligência sensível. Se corpo e coração estão ausentes, perde-se a oportunidade de qualquer debate. Pessoal e coletivo estão desarticulados. É todo o desafio da relação entre transformação pessoal / transformação social iniciado pela primeira vez há dez anos em um dos seminários de Porto Alegre.
[…] https://seminario10anosdepois.wordpress.com/2010/01/16/moeda-e-%E2%80%9Cgratuidade%E2%80%9D-a-economi… […]